Hoje na noite chuvosa do Rio de Janeiro:
Obs: leia sobre este show no último parágrafo deste texto
Há discos cuja sonoridade não pode ser reproduzida ao vivo. Limitações que poderiam representar uma perda significam renovação. Era o caso do disco de estreia de Céu. Ganhava em densidade em proporção idêntica ao que perdia em delicadeza e se transformava em outro, como à época falamos por aqui. O DJ Marco era o elemento catalisador da banda, fazendo as funções de multi-instrumentista, soltando os vocais de apoio, os metais, além dos scratches.
Vagarosa, o disco, é diferente. Como Céu mesmo afirmou em várias entrevistas, ela buscou uma sonoridade mais orgânica e elétrica, com menos beats eletrônicos e instrumentos acústicos. Na transposição para o palco as músicas novas estão mais próximas das versões de estúdio, mesmo que a banda tenha perdido um integrante. O antes percussionista Bruno Buarque assumiu a bateria no lugar de Serginho Machado, transferindo ao DJ Marco a responsabilidade por fazer os contrapontos ritmícos que anteriormente lhe cabiam. Guilherme Ribeiro agora reveza-se entre o seu teclado usual, a guitarra e o acordeon, por vezes trocando-os durante a execução de uma mesma música. Lucas Martins não larga o baixo.
A intensidade dos arranjos continua a mesma, embora as poucas canções do primeiro disco incluídas no repertório do show tenham ganhado nova roupagem. Destacadamente "10 Contados", agora com a base harmônica lindamente levada no acordeon, realçando ao vivo a delicadeza registrada em estúdio.
Mais de oito shows assistidos na esteira do lançamento de CéU, Pindzim conferiu até agora dois espetáculos da turnê atual: a estreia, no dia 27 de agosto, no Bar Opinião, em Porto Alegre, e a segunda de três noites no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, no último sábado, 4 de outubro. Entre um e outro, bateu a saudade. Vagarosa(s), show e disco, são o que de melhor apresentou a música brasileira neste ano, o que não é pouco, considerando-se os grandes discos já lançados e aqueles ainda por sair. Futuramente 2009 será lembrado tal qual 1959 (marco inaugural da bossa nova) ou o biênio 1967/1968 (consolidação e glória de uma nova geração formada por Chico, Gil, Caetano, Gal, Mutantes, Paulinho da Viola, etc), mas isso é outro assunto.
Vagarosa Tour
Um vídeo promocional da Natura, patrocinadora da turnê, com belas imagens e pouco conteúdo, em que Céu divaga sobre a sua música, anuncia que o show está para começar. Enquanto os músicos se posicionam, o DJ solta a vinheta de abertura - "Sobre o Amor e seu Trabalho Silencioso". A cidade e a casa onde acontece a apresentação dão o tom do que se verá a seguir.
Em Porto Alegre, mesmo sem a guitarra de Fernando Catatau, os primeiros compassos de "Espaçonave" causam estardalhaço preparando a cena para a entrada de Céu. Pisando macio, discreta sob a penumbra, ela toma a cena e sorri. Já iluminada, no centro do palco, deixa-se balançar ao ritmo da música, canta os primeiros versos e assume o comando da nave mãe com a qual nos conduzirá pela próxima hora e meia de viagem na mais alta classe sonora.
Céu está cada vez mais a vontade no palco. Se antes parecia utilizar a dança como um refúgio nas passagens instrumentais, agora os movimentos do corpo acompanham os versos, se expandem e se retraem instintivamente, sem muita racionalização. Só no meio da primeira música, ela faz uma rápida saudação ao público gaúcho. Acabado o primeiro número, sorri e, antecipando-se à banda, que se apressa a segui-la, emenda: "A comadi é ponta de lança". Algumas vozes na plateia a acompanham como se fosse um clássico, que, se ainda não se pode dizer que já é, certamente um dia será. Domínio público, festa de rua. Na boca da cena, os mais animados caem na dança.
Em Porto Alegre, Céu dedica "Cangote" a Gigante Brazil, que tocou a bateria no disco
Em São Paulo, o Auditório do Ibirapuera confere um ar solene ao espetáculo. Comportadamente sentados na sala lotada, todos estão ali para vê-la e ouvi-la com atenção. Cria-se uma distância entre os músicos e o público e, mesmo em casa, Céu começa o show menos confortável do que na estranha Porto Alegre, nem sempre receptivas aos músicos e bandas que trabalham reprocessando e subvertendo as tradições da música brasileira.
Já na largada, "Espaçonave" e "Comadi" ganham o reforço de Pupillo e de Fernando Catatau. O primeiro, baterista da Nação Zumbi, além de exímio musicista do ritmo, é um dos grandes produtores em atividade na borbulhante cena atual; o segundo, cabeção central do Cidadão Instigado, é um compositor de peças conceituais que fazem jus à melhor tradição pop das operas-rock do Pink Floyd e do The Who, e ainda por cima um dos dois guitarristas mais originais da cena, posto que divide com Lucio Maia.
Está certo que ambos fizeram parte da banda de Otto, ou seja, não é tão incomum vê-los juntos no palco. Mas é diferente. Não estão ali pela fanfarra. É uma cantora quem está a frente da banda, uma daquelas que é injustamente associada à incontível proliferação de cantoras ao mesmo tempo festejadas e criticadas, dependendo do gosto do freguês, apesar dos detalhes cosméticos de perfume, cabelo, caras e bocas que (não) as diferenciam uma das outras. Está claro que Céu não precisa deles no palco para além da celebração de estarem reunidos para tocar aquelas músicas juntos. Músicas sobre as quais anteriormente eles trabalharam juntos em estúdio para dar-lhes a forma final. Ela se sai muito bem somente com os usuais companheiros de banda.
Quando anuncia a participação dos dois, ambos já saíram do palco e nesse momento deixa transparecer um certo nervosismo inexistente durante a execução das músicas. É o primeiro momento em que se dirige aos presentes e a comunicação com o público não é algo que Céu encara com naturalidade. O lance dela é cantar e fazer um som: na sequência emenda "Lenda" e "Malemolência". Depois de cantá-las, as dedica ao parceiro Alec Haiat, presente no recinto, e os últimos fiapos de tensão se dissipam.
"Grains de Beaute" segue o roteiro impresso no programa, tal qual em Porto Alegre, porém, quando logo em seguida Céu conta que foi surpreendida por um telefonema de Siba presenteando-a com uma letra para o novo álbum, "Nascente" é a segunda pista de que aqueles três shos do Ibirapuera são, na verdade, uma mini-temporada especial. Rasgue-se o programa. No Auditório do Ibirapuera, Céu, banda e convidados tocaram todas as músicas de Vagarosa.
Com letra de Siba, "Nascente" foi incluída no roteiro do show a partir do Ibirapuera
"Vira Lata" não contou com o contraponto grave da voz de Luiz Melodia e ela lamentou a ausência. Por outro lado, como no disco, teve a graça do cavaquinho de Rodrigo Campos, anunciado como o compositor de um dos melhores discos de 2009 - São Mateus não é um Lugar Tão Longe Assim. Assino embaixo. Rodrigo assume o pandeiro em "Visgo de Jaca" e enquanto a banda estende a parte instrumental no final da canção, Céu deixa o palco para trocar de roupa e voltar com Anelis Assumpção, Catatau e Pupillo na "Bubuia". No sábado, Thalma de Freitas não apareceu, ao contrário de sexta e de domingo. O trecho que ela canta ficou de fora. Reverência bonita à terceira coautora da canção, pouco notada diante da sintonia entre a dupla presente.
Logo na estreia, em Porto Alegre, ficou evidente que Céu está muito a vontade com o repertório de Vagarosa e isso tem reflexo naquilo que é o mais importante para uma cantora: a voz. Está mais segura, límpida e potente. No palco, Céu continua se mostrando mais compositora que intérprete, focada no som, sem grandes salamaleques para com a platéia, mas em "Cordão da Insônia" e "Two to Tango" chega a ser performática. Esta última, pinçada de um disco que reuniu Ray Charles e Betty Carter, reafirma sua sensibilidade para escolher músicas alheias para o seu repertório.
Com um vocal no melhor estilo Motown sobre uma base de ska e uma breve citação ao tango do título da canção, Céu reafirma que mesmo quando assume o papel de intérprete não deixa de lado sua veia autoral. Suas versões para músicas alheias as transportam para o seu domínio particular de renovação inovadora. Fato raro no panorama da música brasileira, mais ainda quando ela transgride sobre patrimonios do samba ("Visgo de Jaca") e do reggae ("Concrete Jungle"), gêneros sobre os quais os puristas costumam renegar aquilo que não se enquadra fielmente à tradição.
Antes de ir embora, no Ibirapuera, ela chama todos os convidados especiais ao palco para uma versão estendida e festiva de "Rainha". Cumpridos os rituais de agradecimento e despedida, fica a expectativa pelo bis. Porto Alegre teve "Bobagem" e a repetição de "Comadi". Em São Paulo, a volta com Pupillo e Catatau não chega a ser uma pista, mas o instrumental etéreo que sai das caixas entrega: para o derradeiro final Céu guardou "Rosa, Menina Rosa" e aí dispensam-se palavras. Fiquem com as imagens e o som:
Menos de uma semana depois, Céu veio tocar no Rio. Era uma sexta-feira chuvosa, véspera de um fim de semana estendido pelo feriado de 12 de outubro. Realizou um desejo antigo: o de subir no palco do Circo Voador. A celebração festiva que se seguiu à sua entrada em cena, da primeira à última música, mostrou que ela estava certa em sua intuição. E o Rio de Janeiro, indiferente à decadência cultural a que atravessa - ainda mais agora, com a elevação da autoestima proporcionada pelo triunfo olímpico - mostrou que nem toda sensibilidade carioca está perdida. Se ainda faltava uma apresentação apoteótica para confirmar aquilo que é óbvio (Céu: a melhor cantora do Brasil), depois do 9 de outubro no Circo Voador não falta mais. O show no Rio de Janeiro foi a consagração definitiva, a lona mambembe em frente aos seculares arcos da Lapa tem uma nova dona. Céu, quando quiser é só chegar, a casa é sua.
3 comentários:
"No Futuro 2009 será lembrado como 1959 e 1968"
Nossa, cara, esse ano está com essa moral toda?
Seria bem interessante um post sobre isso.
PS: Sou fã da sua pena.
Um abraço
José Henrique
Valeu, José, obrigado pela atenção. Acho que está sim e pretendo até o fim do ano explicar as razões.
abraço
esse show tava demais. Melhor até que a estréia em Porto Alegre.
.... ano de excelência.
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