terça-feira, 5 de junho de 2007

Céu: a cantora da nação

Os acordes do violão ainda não identificavam a música quando se ouviram os primeiros versos de “O Ronco da Cuíca”. A banda, posicionada na porção esquerda do grande palco do Vivo Rio, acompanhava discretamente, respeitando a proeminência do violão do co-autor da canção. Dedilhando as cordas, o mestre de cerimônias João Bosco estendia o tapete vermelho para Céu, a estrela da noite. A banda se retira e os dois se aproximam no centro do palco. O violão percussivo anuncia “Rainha”, cantada em dueto. O acento grave da voz de João contrasta com a delicadeza frágil do timbre da voz da cantora.


Mas é quando João deixa o palco e o DJ dispara a introdução de “Roda” que o show de Céu efetivamente começa. A intensidade musical da cantora no palco está umbilicalmente vinculada aos músicos da banda que a acompanha. Sérgio Machado, na bateria, e Bruno Buarque, na percussão, produzem o substrato rítmico de raiz afro-brasileira. A densidade do som provém do baixo de Lucas Martins. O teclado de Guilherme Ribeiro concentra as linhas melódicas. O DJ Marco é uma verdadeira usina sonora. Saem de suas pick ups a segunda voz, bases de guitarra, naipe de metais, contrapontos percussivos, além dos scratches e efeitos. Na mesa de som, Gustavo Lenza garante a equalização harmônica entre voz e instrumentos. Com esta formação, a música de Céu atinge a perfeição entre o ideal – conforme registrado em estúdio – e o imaginado – as concepções artísticas dela enquanto compositora.

Mesmo quando assume a condição de intérprete em “Concrete Jungle”, de Bob Marley, e “Visgo de Jaca”, de Sérgio Cabral e Rildo Hora, ela imprime seu toque pessoal. Se a variação melódica do reggae, em sua versão original, já expandia os limites do gênero, Céu aprofundou-a explorando as nuances de sua voz e também lhe alterou sutilmente o ritmo com uma marcação menos rígida na guitarra e uma bateria mais quebrada. Já o samba, em nada guarda relação com a versão gravada originalmente por Martinho da Vila. Céu transfigurou-o em um soul funkeado com uma pitada de reggae aqui e ali. No refrão, Céu altera a entonação em benefício do groove e ainda abre espaço para um solo do DJ Marco.

O tempo passado na estrada em apresentações nos Estados Unidos, seguidas por duas temporadas no Tom Jazz, em São Paulo, foi benéfico para aprimorar o desempenho da cantora e de sua banda no palco, mas o show do Vivo Rio manteve a essência do último concerto da cantora no Rio de Janeiro, no Tim Festival. O repertório reuniu as músicas do disco de estréia, excluídas as lentas “Valsa para Biu Roque” e “Véu da Noite”, os sambas “Bobagem” e “Samba na Sola”, e “Mais um lamento”. Também ficou de fora “Ragga”, música composta em parceria com os integrantes da banda durante turnê na Europa que vem sendo tocada ocasionalmente e aponta para a expansão de seus horizontes musicais.


Sua performance no palco é de entrega à música mais do que ao público. Por cantar composições próprias, o sentimento que Céu transmite através de gestos e expressões corporais ao interpretá-las é genuíno. Assim, a imposição de sua presença se dá naturalmente. Seja no estilo de dançar indiferente à platéia, por vezes de costas, interagindo com os integrantes da banda, outras como se estivesse sozinha em uma pista de dança. Ou no improviso travestido de samba, “Chegou de mansinho, veio vagarinho, ô menino bonito...” que ela incorporou definitivamente à “Malemolência”. E ainda, advertindo que não tomem sua gentileza por fraqueza durante a execução de “Rainha”.

Quando dividiu o palco com João Bosco, Céu assumiu uma postura contida, sentada em um banquinho, revisitando clássicos do cancioneiro nacional no formato voz e violão. Apesar de toda beleza contida em sua interpretação de “Isto aqui o que é”, de Ary Barroso, fica claro que Céu fica mais a vontade ao tangenciar a tradição sem apropriar-se dela.

É notório que a música brasileira vive um período fértil de jovens cantoras. Mas, se por um lado boas vozes não faltam, a originalidade esbarra no conservadorismo dos repertórios e dos arranjos. Passada a fase da bossa eletrônica que exportou talentos e ainda rende frutos tardios por aqui, caiu-se na maldição do samba. Revitalizado a partir de um movimento engendrado por uma nova geração carioca em rodas na Lapa e no carnaval de rua, hoje, a tal maldição está espalhada pelo Brasil. Enquanto algumas bandas conseguem mimetizar o samba ao som de baixo, guitarra e bateria, outros através de samplers e scratches, nossas cantoras acabam aprisionadas em arranjos reverentes, seja ao samba, à bossa nova ou mesmo ao pop, deixando-se enquadrar entre seguidoras ou de Elis, ou de Clara, ou de Nara ou de Marisa.

Céu, ao contrário, incorpora o samba sem devoção ou deslumbramento, incorporando-o a outras matrizes da música negra, o que resulta em uma musicalidade original que transcende o mero folclore nacional e é reconhecida pela sua criatividade para além das fronteiras do país. Suas incursões explícitas ao gênero são duas: “Samba na Sola” e “Bobagem”. Esta última, um samba incomum, melancólico e de ritmo lento, cuja introdução de acordes dissonantes deságua numa levada percussiva minimalista sobre a qual Céu entoa: “Minha beleza, não é efêmera, como a que eu vejo em bancas por aí. Minha natureza é mais que estampa, é um belo samba que ainda está por vir”. Uma letra da cantora para a sua nação.


Confira um vídeo de Céu e João Bosco ao vivo no Vivo Rio na Tuba do Pindzim.

Um comentário:

Anônimo disse...

Um grande salve e um abço campeiro...
Pindzim...parabens pelo bolg, cada vez mais conciso, analítico e claro, de grande influencia aos que leem os comentários do maestro.
Escrevo pra, alem de parabenizar, reafirmar aquela passada semanal, quase que diária, aqui por essas bandas. 5f, eu, Lorenço e Ana Cañas no baretto....vamos ver se rola. tentei reservar mesa...mas...
de qqr forma, caso role, vai nossa contribuição pro amigo através daquele videozinho caseiro, sintonizado com a bela voz de Ana.
sempre sempre...na resistencia musical se fazem grandes guerreiros culturais !!