segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 3

Claridade
O sucesso do espetáculo Brasileiro – Profissão Esperança foi arrasador. Foram 127 apresentações entre setembro de 1974 e abril de 1975. Ao mesmo tempo, Alvorecer se tornava o maior sucesso de vendas da carreira de Clara até então. Vivendo um momento de glória, Clara finalmente se sentiu completamente realizada ao casar-se com Paulo César Pinheiro. A sintonia afetiva que havia entre os dois estendeu-se ao campo profissional e foi determinante para a carreira artística de um e de outro.

Porém, Paulo César não quis se envolver diretamente na produção de Claridade, primeiro disco gravado por Clara após o casamento. Contribuiu apenas como compositor em parcerias com Guinga (“Valsa de Realejo”) e João Nogueira (“Bafo de Boca”). O violonista Hélio Delmiro assumiu a produção e se empenhou em montar um repertório impecável que reuniu composições de Cartola (“Que seja bem feliz”), Nelson Cavaquinho (“Juízo final”), Ismael Silva (“Ninguém tem que achar ruim”) e dos portelenses Monarco e Walter Rosa (“Vai amor”), Alberto Lonato (“O sofrimento de quem ama”) e Candeia, presente com duas composições: “O último bloco” e “O mar serenou”. Esta última foi um dos grandes sucessos do disco – que superou a marca de 500 mil cópias vendidas – ao lado de mais um hit da duplaRomildo e Toninho - “A deusa dos orixás”.



Paulo César Pinheiro já era um letrista reconhecido quando ele e Clara se apaixonaram. Suas parcerias com Baden Powell haviam feito grande sucesso na voz de Elis Regina (“Lapinha”, “Vou deitar e rolar”, “Aviso aos navegantes”). Embora não tivesse experiência como produtor, assumiu, naturalmente, a produção executiva dos discos de Clara a partir de Canto das três raças, além de assinar a faixa título, que abre o disco, em parceria com Mauro Duarte. Embora não haja em Canto das três raças nenhum outro grande sucesso, talvez “Lama”, também de Mauro Duarte, o disco repetiu a vendagem do antecessor e a temporada de lançamento, no Teatro João Caetano, no centro do Rio, confirmou no palco a comunhão entre a cantora e o seu público devotado.

Assista abaixo uma versão de “Canto das três raças” na voz do próprio Paulo César.



Show e disco renderam vários prêmios a Clara: cantora do ano pela crítica, mais popular intérprete brasileira pelo público e o Troféu Imprensa foram alguns deles. A incompreensão – ou má vontade, ou incompetência mesmo – de alguns críticos de publicações importantes como a Veja e o Jornal do Brasil, que a despeito do enorme sucesso popular da cantora, ousavam fazer restrições ao seu trabalho, não tiravam a felicidade da cantora. A única coisa que faltava para Clara era a confirmação de uma tão esperada gravidez e ela veio no fim do ano de 1976. Orfã desde muito cedo, Clara sempre prezou pelos valores familiares. Sonhava em ser mãe para poder se dedicar à criança, nutri-la com carinhos e cuidados que ela mal chegou a ter. Porém, este seria um desejo jamais realizado devido a existência de miomas em seu útero que impediam qualquer gravidez de ir adiante.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 2

O samba é meu dom

O fracasso comercial de Você passa e eu acho graça desnorteou ainda mais a jovem Clara Nunes e também os diretores da Odeon. E o disco seguinte, A beleza que canta é um reflexo perfeito da falta de rumo da carreira da cantora. O samba foi posto de lado. Os arranjos ficaram mais leves sem, no entanto, perder a imponência. No repertório predominam canções românticas, como no disco de estréia, misturadas a três composições do versátil Carlos Imperial, que assina a assistência de produção. Também é neste disco que Clara flerta com a Jovem Guarda em duas músicas de importantes compositores do movimento: "Gente boa", de William Prado, e "Graças a Deus", de Fernando Cesar. A capa é o mais perfeito retrato de tais contradições: traz uma Clara sorridente, vestindo calça e colete de couro sobre uma camisa social branca fechada até a gola. Quem sabe uma tentativa de torná-la uma cantora para ser ouvida em família, ao mesmo tempo interessante à parcela mais recatada da juventude e aos pais saudosos das cantoras do rádio. Em pelno furacão tropicalista, o resultado não poderia ter sido outro: mais um tiro n'água. Porém, em "Guerreira de Oxalá", uma das composições de Imperial, já se ouve a voz da cantora limpa, sem impostação, com o timbre e o estilo vocal com os quais ela se consagraria em um futuro próximo.

Os homens da vida de Clara tiveram participação importante nos rumos musicais seguidos pela cantora. Seu futuro namorado, o produtor Adelzon Alves, seria o responsável por sua guinada para o samba, no ano de 1970. Após três discos insignificantes, tanto artística quanto economicamente, Clara estava decidida a tomar as rédeas de sua carreira. A experiência nos terreiros de candomblé e o sucesso de "Você passa eu acho graça" indicavam um caminho a seguir. Ao entrar em estúdio, ela estava firme em seus propósitos de explorar as raízes musicais afro-brasileiras. Para tanto, gostaria de ter como produtor Hermínio Bello de Carvalho, vetado pela gravadora em um jogo de bastidores orquestrado por Carlos Imperial. Por sugestão da própria Clara, Adelzon, radialista que comandava um programa dedicado ao samba na Rádio Globo, assumiu a produção do disco tendo em mente transformá-la na sucessora natural de, pasmem, Carmen Miranda. Clara Nunes é um disco de transição, ainda há uma ou outro arranjo orquestral, mas Clara empunha com garra o estandarte do samba. Também há um baião (“Sabiá”), um frevo (“Novamente”), gênero que poucas vezes foi cantado por ela, e duas vinhetas do folclore litorâneo (“Puxada da rede do xaréu”). Se o disco não foi um grande sucesso, também não repetiu os fracassos anteriores e ao menos uma música estourou: "Ê baiana", um samba rasgado com bateria acelerada. Clara finalmente encontrava uma identidade própria.

Na seqüência, saiu “Clara Clarice Clara”, disco que marca a entrada de Clara no universo dos grandes bambas do samba. Se o disco começa com “Sempre Mangueira”, de Nelson Cavaquinho e Geraldo Queiroz e a terceira faixa é “Alvorada no Morro”, de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, o maior sucesso foi Ilu Ayê (Terra da Vida), samba-enredo de Cabana e Norival Reis que deu à Portela o terceiro lugar no carnaval daquele ano.

Em 1973, Clara apresentou-se ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho no espetáculo Poeta, Moça e Violão. Quase ao mesmo tempo, era lançado Brasília, seu primeiro grande clássico. A faixa de abertura, “Tristeza pé no chão”, samba de Mamão, um compositor de Juiz de Fora, foi o grande sucesso de um disco que tem canções de Chico Buarque (“Umas e outras”), Nelson Cavaquinho mais uma vez, agora em uma parceria com Guilherme de Brito (“Minha festa”), e Dorival Caymmi em uma interpretação dramática de “É doce morrer no mar”. Na versão abaixo de “Quando vim de Minas”, também presente no disco, Clara interpreta a canção de Xangô da Mangueira entre Martinho da Vila e Dona Yvone Lara, cuja voz se faz ouvir no coro. Em estúdio, ela inseriu um “ora veja, Chilau” entre os versos do refrão, como quem diz: “mano velho, sua irmã agora é uma estrela”. Clara se consolidava como a mais popular cantora brasileira.

Logo, seria uma estrela internacional. Em janeiro de 1974, Clara se apresentou no MIDEM, em Cannes, e arrebatou o público francês. Sua performance no palco, acompanhada pelo conjunto Nosso Samba, está registrada na capa de Alvorecer, disco que sucedeu Brasília. Puxada pelo sucesso de "Conto de Areia", a vendagem atingiu a impressionante marca de 400.000 unidades vendidas, uma cifra sem precedentes para uma cantora brasileira. Com a sua popularidade no auge, Clara era presença constante não só no rádio, mas também na televisão. Aqui ela interpreta "Meu sapato já furou" no programa Globo de Ouro.



No mesmo ano, Clara foi convidada por Bibi Ferreira a participar do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, ao lado do ator Paulo Gracindo. Tratava-se de uma homenagem ao jornalista e compositor Antonio Maria e à cantora e compositora Dolores Duran. Paulo Gracindo atuava como o cronista narrador enquanto Clara era responsável pelos números musicais em que interpretava canções dramáticas que nada tinham a ver com os rumos que sua música havia tomado. De certo modo, foi uma segunda volta por cima, pois o espetáculo permitiu que ela mostrasse todo o seu talento enquanto cantora e intérprete para além do universo do samba e da música popular. Foi então que ela conheceu Paulo César Pinheiro. Acometidos por uma paixão fulminante, os dois se casaram. Se o sucesso havia ampliado as liberdades de Clara dentro da Odeon, ao lado do marido ela assumiu autonomia total sobre as escolhas artísticas que iriam pautar sua carreita até o acidente que lhe tirou a vida.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 1

Quando eu vim de Minas


Consagrada em palcos mineiros, Clara Nunes resolveu trocar Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro em 1965. Tratava-se de um passo necessário para quem almejava seguir a carreira musical. Contou com a ajuda do namorado Aurino Araujo que a hospedou em seu apartamento em Copacabana, no número 41 da rua Francisco Otaviano, onde já estavam instalados o cantor ligado à Jovem Guarda, Eduardo Araujo, irmão de Aurino, e o playboy Carlos Imperial, figura conhecida no meio artístico.

O terceiro lugar no concurso "A Voz de Ouro ABC" havia dado alguma projeção nacional a Clara. Isto aliado à força de alguns amigos fez com que Clara fosse encaminhada à Odeon, onde a diretora do departamento de divulgação da empresa, Alayde Araujo, a recebeu. Com o aval de Alayde, o diretor artístico da gravadora, Milton Miranda, resolveu apostar em sua conterrânea. Em 21 de julho de 1965, não muito tempo depois de ter chegado ao Rio, Clara entrou em estúdio para gravar "Amor quando é amor", de Othon Russo e Niquinho, canção lançada em um compacto simples e que posteriormente seria a primeira faixa do lado A do LP de estréia da cantora - A Voz Adorável de Clara Nunes -, cujo repertório era baseado em canções românticas com orquestrações grandiosas, estilo já há época um tanto fora de moda. Foi um fracasso absoluto, tendo somado apenas 3.100 cópias vendidas.

O número abaixo está presente no filme Os Reis do Iê-iê-iê, que marcou a estréia da dupla Renato Aragão e Dedé Santana no cinema.



É curioso que a cena reproduza o ambiente de um festival da canção em que Clara fica com o segundo lugar. Os festivais eram os grandes eventos musicais da época e serviram de palco para consagração dos artistas que acabariam entrando para a história da música brasileira. Não foi o caso de Clara. Poucos compositores acreditavam na mineira e menos ainda foram os que confiaram suas músicas para que ela as defendesse. Apresentando canções de compositores menores, Clara Nunes não obteve destaque durante a era do festivais. Invariavelmente, as músicas que interpretava não ficavam entre as primeiras colocadas. Pior, raramente chegavam às finais. "Sou filho de rei", de João Mello e Fernando Lobo, foi uma das raras canções com a qual ela alcançou a final, embora não tenha ficado nem entre as cinco primeiras colocadas. Foi em 1969, no V Festival da Música Popular Brasileira, em que "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola, saiu consagrada como a grande vencedora. Veja a apresentação de Clara no festival:



Antes deste festival, ainda no ano anterior, Clara havia obtido seu primeiro sucesso, não sem o auxílio providencial, ainda que a contragosoto, do famigerado Carlos Imperial. Pressionado pelo amigo Aurino Araujo, Carlos Imperial resolveu ceder um samba que havia composto para Clara gravar. No intuito de conferir autenticidade à música, Carlos Imperial providenciou uma reunião com o bamba Ataulfo Alves para lhe apresentar a Clara e também à canção. Ataulfo ficou encantado com a cantora, fez alterações em um ou outro verso e terminou por assinar, em parcerica com Imperial, "Você passa, eu acho graça". A canção foi inscrita no festival O Brasil Canta no Rio, promovido pela extinta TV Excelsior. Imperial se encarregou do esquema de divulgação radiofônica e a música tocou bastante. A interpretação de Clara classificou a canção para a grande final, em que foi defendida pelo próprio Ataulfo. Mesmo estando entre as favoritas, "Você passa, eu acho graça" conquistou apenas o quinto lugar. Mas, pela primeira vez, Clara conseguia uma relativa projeção. E foi cantando um samba.

Bem, isto é o que conta Vagner Fernandes em Clara Nunes - Guerreira da Utopia. Confira abaixo a versão da cantora para a história, na qual ela faz apenas uma breve menção a Carlos Imperial e credita sua entrada no universo do samba exclusivamente a Ataulfo Alves.



Você passa e eu acho graça seria o nome do segundo LP de Clara Nunes, que conta ainda com outra composição da dupla Carlos Imperial e Ataulfo Alves ("Você não é como as flores"), mas a faixa-título não foi suficiente para garantir-lhe o sucesso. Embora tenha se configurado em mais um fracasso inapelável, neste disco, Clara fez sua primeira incursão para valer no universo do samba em músicas de compositores como Noel Rosa ("P'ra esquecer"), Martinho da Vila ("Grande Amor"), Darcy da Mangueira ("Cheguei à conclusão") e Chico Buarque ("Desencontro"), além da canção que dá nome ao LP. Tal opção, parece ter sido antes uma aposta comercial em função do relativo sucesso de "Você passa, eu acho graça" do que uma opção consciente da cantora ou de seus produtores. A produção musical seguiu privilegiando o canto empostado e os arranjos grandiosos, fiel ao conceito romântico no qual a cantora foi enquadrada pela gravadora. E mesmo contabilizando mais um fracasso, o terceiro disco de Clara Nunes não apresentaria nenhuma novidade em relação aos primeiros.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Livro: Clara Nunes - Guerreira da Utopia


Orfã de pai e mãe desde os seis anos de idade, caçula da prole de seis filhos de Manoel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes, Clara Francisca Gonçalves foi criada pelos irmãos mais velhos, José Pereira Gonçalves e Maria Pereira Gonçalves, mais conhecidos na pequena Caetanópolis como Zé Chilau e Mariquita. Na noite de 3 de setembro de 1957, em defesa da honra da irmã, ele assassinou a facadas o menor Adilson Alvarez da Costa, cujo pecado mortal foi expor a amigos supostas intimidades que havia tido com a bela menina Clara. Delatado pela vítima antes de desfalecer, não restou outra alternativa a Zé Chilau a não ser fugir. Na ausência do verdadeiro culpado, Clara assumiu a condição de ré perante o julgamento moral infligido pela população de Caetanópolis. O verdito? Foi condenada sem direito a apelação, excluída de toda e qualquer atividade social, e se viu obrigada a partir para Belo Horizonte. Se os primeiros tempos na capital foram de dificuldades e privações - trabalhava o dia inteiro em uma tecelagem e morava de favor em um barraco de três cômodos dividido com parentes distantes -, a tragédia que se abateu sobre a sua vida, e que ainda a acompanharia por alguns anos, foi decisiva para que ela viesse a ter a oportunidade de tentar a sorte como artista.

O primeiro do capítulo do livro do jornalista Vagner Fernandes emprega artifícios literários para colocar o leitor no centro do furacão que tomou de assalto a vida da menina Clara, então com 15 anos recém completados. Evento que, por vias tortas, foi definitivo para que ela se tornasse Clara Nunes, a cantora brasileira mais popular de sua época.

Clara Nunes - Guerreira da Utopia narra os primeiros anos da vida da cantora com riqueza de detalhes. O autor reporta os fatos como se tivesse acompanhado a gênese da família Pereira Gonçalves e a juventude de Clara. Em um segundo momento, a partir da mudança para Belo Horizonte, a narrativa abandona eventuais pretensões literárias e assume a objetividade jornalística que vai pautá-la até o fim. Vagner Fernandes dá voz a testemunhas fundamentais do ingresso da jovem no ambiente musical capital mineira, aos avalistas de seus primeiros contratos radiofônicos e àqueles que apostaram em sua consagração regional definitiva no concurso "A Voz de Ouro ABC". Os depoimentos de Aurino Araujo, primeiro namorado sério de Clara e que seria o responsável por facilitar sua mudança para o Rio de Janeiro, revelam a insegurança e os dilemas vividos pela cantora em sua chegada à antiga capital federal. Foi na casa que ele mantinha no Rio de Janeiro que Clara conviveu com Carlos Imperial, que, embora não acreditasse no potencial daquela "caipira", como ele costumava se referir a ela em conversas com o amigo, foi o autor de seu primeiro sucesso: "Você passa, eu acho graça". A essa altura, Clara já tinha contrato assinado com a Odeon, gravadora que lançou seu primeiro LP - A Voz Adorável de Clara Nunes -, cujas vendas foram um fracasso absoluto.

Estes são fatos mais ou menos notórios. As revelações mais interessantes que o autor faz a respeito deste período dizem respeito ao flerte indeciso que Clara travou com a Jovem Guarda - mais uma escolha infeliz haja visto que a febre musical do momento era a Tropicália, capitaneada por Gil e Caetano, cujas propostas estéticas e intelectuais ousadas empurraram para o limbo midiático os roquinhos de Roberto, Erasmo e sua turma -, às suas participações sem destaque nos diversos festivais da época, ao rolo com a ditadura por ter gravado "Apesar de Você" - em contrapartida teve que gravar o Hino da Olímpiado do Exército -, e à descoberta da umbanda, evento que de alguma forma seria um primeiro passo inconsciente rumo à consolidação da identidade artística e espiritual da cantora, até então kardecista.

A partir do momento em que Paulo César Pinheiro entra na vida da cantora, o autor afasta a narrativa do núcleo íntimo de Clara para recorrer muito mais à memória coletiva da época, à pesquisa bibliográfica e a pessoas não tão próximas, do que àqueles que conviveram diretamente com ela. Um pouco disso está explicado nas entrelinhas: depois do casamento com Paulo César, muito em respeito ao novo companheiro, Clara torna-se mais reclusa. O autor faz questão de sublinhar que não foi Paulo César, sozinho, o responsável por esta mudança de atitude. Provavelmente não foi mesmo. Sempre muito expansiva, frequentadora da quadra da Portela, das rodas de samba, dos terreiros de candomblé, da casa de amigos, Clara queria ter filhos, constituir uma família e havia encontrado em Paulo César o parceiro ideal.

Mesmo agora, muitos anos depois, ele parece negar-se a uma maior exposição da época em que foram casados. Pouco se fica sabendo deste período pelas palavras do ex-marido. Este escudo em nome de uma privacidade póstuma, mantém algumas lacunas a respeito da atividade musical da cantora a partir do momento em que Paulo César assume a produção de seus discos e, juntos, os dois amplificam a pesquisa de gêneros e estilos musicais brasileiros que Clara já vinha desenvolvendo.

Clara manteve ao redor de si ao longo da carreira um círculo de compositores fiéis como alguns bambas da Velha Guarda da Portela, Nelson Cavaquinho, a dupla Romildo e Toninho, Mauro Duarte, João Nogueira, assim como sempre foi acompanhada em suas apresentações ao vivo pelos músicos do Conjunto Nosso Samba, desde sua adesão ao gênero até os últimos shows. De sua relação com eles pouco se fica sabendo através do livro. É verdade que, por outro lado, o convívio com Chico Buarque ganha bastante espaço em suas páginas, assim como é esclarecedor o depoimento de Paulinho da Viola sobre uma amizade que na verdade se resumiu a encontros ocasionais e a apenas duas músicas dele gravadas pela cantora: "Na linha do mar" e "Coração Leviano".

Não soa verossímil também a idealização da personagem operada pelo autor em afirmações recorrentes subtraindo todo e qualquer defeito ou incongruência que Clara pode ter demonstrado em um ou outro momento de sua vida. Não é algo comum ao ser humano, quanto mais no meio artístico, e a rivalidade com Beth Carvalho, assunto que injustamente é o que tem rendido mais espaço na mídia a propósito do lançamento da obra, mesmo sendo o único contraponto a uma conduta sempre irrepreensível, serve como prova em contrário. Com isso não se pode dizer que Beth tenha razão em suas críticas, pois sempre foi e sempre será uma sambista de menor estatura diante da multiplicidade musical de Clara, independentemente de qual das duas tenha sido a primeira a gravar um samba ou se vestido de branco para cantar. Pelo contrário, soam ainda mais levianas quando se leva em consideração que Clara não está mais aqui para dar a sua versão da história. Beth recorre a fuxicos como esse para não ser esquecida em vida, pois há tempos sua música sobrevive de regravações moribundas. Postas lado a lado, as obras de uma e de outra falam por si. A História com H maiúsculo Clara Nunes escreveu cantando. Historinhas menores como a de Beth existem muitas por aí.

Nos próximos dias, aproveitando o lançamento deste belo documento à memória de Clara Nunes, o Blog do Pindzim prestará a sua homenagem revivendo alguns momentos musicais e curiosidades biográficas daquela que foi em sua época a mais popular entre todas as cantoras e, hoje, sem dúvida, ainda que não seja totalmente reconhecida por isso, é a maior influência, consciente, inconsciente ou, talvez, sobrenatural, sobre a nova geração de mulheres que vai buscar no samba e nos ritmos regionais brasileiros a inspiração para os seus cantos. Guerreira, todas devem reverência a você. E todos nós à sua música.

Oxalá, Clara Nunes.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A segunda vinda de Roberta Sá

Antes de Que belo estranho dia para se ter alegria chegar ao público, Roberta Sá se apresentou pela primeira vez no Canecão. O show trazia um repertório dividido igualmente entre canções de Braseiro e do disco a ser lançado. Talvez por falta de intimidade com as novas canções, ou pelo peso da estréia no mais famoso palco carioca, ela mostrou-se insegura, chegando até mesmo a se atrapalhar durante a execução de "Girando na Renda". Apesar da produção caprichada, a cantora não chegou a empolgar a casa lotada. Aprisionada pela rigidez da direção de Pedro Luis e Bianca Ramoneda, deixou transparecer artificialidade em gestos e movimentos estudados. De positivo, houve as canções que estariam no novo trabalho. A prévia revelou escolhas acertadas que apontavam para um segundo disco promissor.


Pois na semana passada, Roberta voltou aos palcos cariocas, desta vez no acolhedor Teatro Rival, depois de ter feito alguns shows em São Paulo e uma apresentação fechada no Estrela da Lapa para gravação do programa Palco MPB. Colhendo os frutos do sucesso de público e crítica, Roberta apresentou um show já amadurecido, conduzido pela segurança de uma cantora com pleno domínio do novo repertório. Uma evolução considerável, tanto mais porque duas semanas antes, no evento promovido pela rádio MPB FM, ela demonstrara insegurança nos dois números de abertura do espetáculo.

No palco, Roberta Sá é uma cantora que se afirma pela voz e a entrada em cena com "O Pedido", de Júnio Barreto e Jam da Silva, serve para que ela, a voz, imponha sua presença. Grande parte da platéia marca com palmas o ritmo da música enquanto Roberta canta com os olhos fechados. A empatia com o público é imediata, sem a necessidade de artifícios ensaiados. Vem "Alô Fevereiro", do finado Sidney Miller, samba de cadência contagiante que já no show do Canecão se apresentara como um dos pontos altos de Que belo estranho dia para se ter alegria. Liberta das rígidas amarras da direção, Roberta já não se vê constrangida a balançar os braços durante o coro tal qual uma Ivete Sangalo do samba. Apenas canta e é o que basta para encantar. A tímida dança durante o solo em baixaria da violonista Antônia Adnet é o máximo de desinibição a que ela se permite. Os efeitos eletrônicos que emulam scratches de um DJ, e soam anacrônicos no disco em um samba dos anos 70, ao vivo não têm o mesmo destaque. A versão sai ganhando, embora o belo arranjo de metais não seja reproduzido no palco.

A propósito, os efeitos eletrônicos presentes no disco soam como uma tentativa de modernizar a sonoridade de uma cantora que tem suas referências musicais calcadas no samba e em outros ritmos regionais cuja base instrumental das canções é fundamentalmente acústica. Se em Braseiro e no palco eles são discretos e funcionam basicamente como overdubs, em Que belo estranho dia para se ter alegria eles se destacam em diversas faixas e, definitivamente, não funcionam. São efeitos por si só antiquados em relação às experimentações elterônicas realizadas hoje em dia. Soam como ruídos estranhos à sonoridade das canções. É bem mais interessante, em termos de efeito modernizador, a introdução de uma guitarra em solo permanente sobre a base de "Interessa", um samba remoto cuja ingenuidade da letra cai bem à interpretação recatada da cantora.

O que fixa Roberta Sá como uma das grandes cantoras brasileiras da atualidade, além da voz, é claro, são os compositores que ela grava, especialmente os seus contemporâneos. Assim que, quando após as três músicas iniciais, ela volta ao primeiro disco, esperava-se que entre os sucessos obrigatórios - "A Vizinha do Lado", "Cicatrizes" e "Casa Pré-fabricada" - houvesse espaço para "Lavoura" , de Tereza Cristina e Pedro Amorim. Mas por enquanto não há. Se impõem até um Chico Buarque menor, como o de "Pelas Tabelas", possivelmente pelo significado deste nome para qualquer platéia de música brasileira.

Fechado o parentese, Roberta volta a Que belo estranho dia para se ter alegria com sua primeira canção autoral, feita em parceria com Pedro Luis. E a beleza de "Janeiros" se assenta justamente sobre a forma como a letra, dele, casa-se perfeitamente à bela melodia criada por ela em um samba-choro a altura da tradição do gênero. O mais recente sucesso aparece na metade do show: "Mais Alguém", de Moreno Veloso e Quito Ribeiro, o grande achado do novo disco, surpreendentemente levada à condição de música de trabalho. Roberta contou a Moreno que gostaria de gravar "Um passo à frente", porém, o compositor advertiu-a de que tal canção já havia sido registrada em disco por Gal Costa, mas prometeu que faria uma canção especialmente para ela. O resultado é uma fusão entre o samba de roda da Bahia, o axé e a bossa pós-tropicalista sobre versos que tangenciam os limites do brega romântico. Uma combinação original na qual se percebe de imediato a marca da dupla. No palco, a interpretação contida não diminui a potência vocal de Roberta ao mesmo tempo que desnuda toda a delicadeza de sua voz.

A ela seguem-se os dois números menos interessantes tanto do show quanto do disco. "Cansei de esperar você", de Dona Yvone Lara e Délcio Carvalho, é um samba morno que, pela temperatura, caíria melhor no Samba Meu de Maria Rita ou no universo de Marisa Monte não fosse ele particular. Com sua voz límpida, Roberta faz bonito, mas o arranjo pouco inspirado não justifica seu registro em disco. Na mesma linha há "Belo e estranho dia de amanhã". Esta uma bossa recauchutada cuja sonoridade passadista paga tributo à estética criada pelo produtor Lincoln Olivetti nos anos 80. Em sintonia com o arranjo, a letra dispara críticas à modernidade até cair em um refrão romântico daqueles que gruda no ouvido, mesmo que a contragosto. Por ironia, a canção é assinada por Lula Queiroga, o mesmo autor daquela que é o ponto alto de Braseiro: "Ah se eu vou". Ao cantá-la, mais tarde, Roberta o redimiria arrancando aplausos entusiasmados da platéia. No show atual não há mais o improviso sobre tema do Samba de Coco Raízes de Arcoverde. Pena, pois a combinação das duas músicas na voz de Roberta configurava-se em um dos grandes momentos do show de Braseiro.

A predominância de Pedro Luis entre os compositores do novo disco se explica pela promixidade entre o compositor e a cantora. Na parte final do espetáculo, Roberta apresentou as canções dele em parceria com Carlos Rennó - "Fogo e Gasolina" e "Samba do Amor e Ódio". Se não figuram entre as mais inspiradas do disco, servem para que Roberta explore o alcance e a potência de sua voz para deleite da platéia. O bis foi todo centrado em músicas do compositor: "No braseiro" e, antes do adeus definitivo, "Girando na Renda". A despedida antes do bis coube a "Laranjeira", de Roque Ferreira, em que o samba navega pelas águas do Rio e da Bahia. Em entrevista ao Estadão, Roberta sugeiriu que no futuro vai dedicar um disco inteiro às canções do compositor baiano no qual terá o acompanhamento do Trio Madeira Brasil. Resta esperar e torcer que os bons ventos realmente o tragam à luz. Pelo aperitivo oferecido em "Afefé", presente na coletânea Samba Novo, tem tudo para entrar para a galeria de clássicos da música brasileira.

A nota final fica por conta de uma dupla de compositores gravados por Roberta que não estão tendo destaque no show. São eles Rodrigo Maranhão e Edu Krieger. A nova versão de "Samba de um minuto", de autoria do primeiro, enxuta, com um arranjo quase minimalista, em que, no show, por vezes a voz de Roberta é acompanhada apenas por percussão, perdeu força e intensidade. "Novo Amor", do segundo, foi registrada em estúdio com o acompanhamento único do bandolim de Hamilton de Holanda e acabou excluída dos shows por não poder ser fielmente reproduzida ao vivo. Lamenta-se, pois a versão de Roberta vai além de uma simples releitura. Ela recria a música ressaltando sua riqueza harmônica e a beleza da melodia. Talvez fosse o caso de criar um arranjo em voz e violão que mantivesse o clima de intimidade entre cantora e instrumentista e o diálogo entre o som e o silêncio. Casaria-se perfeitamente a "Olho de Boi", última música de Braseiro, de autoria de Rodrigo Maranhão, outra que raramente é executada ao vivo, possivelmente pelo mesmo motivo - a sutileza da combinação de voz, violão e ataúde da versão gravada em estúdio. Juntas no roteiro do show elas propiciariam o ápice da comunhão entre a jovem cantora e o seu público apaixonado.

Roberta Sá confirmou no palco a excelência artística de seus discos. O espetáculo está bonito, mas tende a melhorar à medida que as apresentações forem se sucedendo, assim como aconteceu com os shows de Braseiro, e as emoções contidas da intérprete se misturem à razão da cantora irrepreensível com cada vez mais naturalidade. E também com maior abertura ao imponderável.