Pois na semana passada, Roberta voltou aos palcos cariocas, desta vez no acolhedor Teatro Rival, depois de ter feito alguns shows em São Paulo e uma apresentação fechada no Estrela da Lapa para gravação do programa Palco MPB. Colhendo os frutos do sucesso de público e crítica, Roberta apresentou um show já amadurecido, conduzido pela segurança de uma cantora com pleno domínio do novo repertório. Uma evolução considerável, tanto mais porque duas semanas antes, no evento promovido pela rádio MPB FM, ela demonstrara insegurança nos dois números de abertura do espetáculo.
No palco, Roberta Sá é uma cantora que se afirma pela voz e a entrada em cena com "O Pedido", de Júnio Barreto e Jam da Silva, serve para que ela, a voz, imponha sua presença. Grande parte da platéia marca com palmas o ritmo da música enquanto Roberta canta com os olhos fechados. A empatia com o público é imediata, sem a necessidade de artifícios ensaiados. Vem "Alô Fevereiro", do finado Sidney Miller, samba de cadência contagiante que já no show do Canecão se apresentara como um dos pontos altos de Que belo estranho dia para se ter alegria. Liberta das rígidas amarras da direção, Roberta já não se vê constrangida a balançar os braços durante o coro tal qual uma Ivete Sangalo do samba. Apenas canta e é o que basta para encantar. A tímida dança durante o solo em baixaria da violonista Antônia Adnet é o máximo de desinibição a que ela se permite. Os efeitos eletrônicos que emulam scratches de um DJ, e soam anacrônicos no disco em um samba dos anos 70, ao vivo não têm o mesmo destaque. A versão sai ganhando, embora o belo arranjo de metais não seja reproduzido no palco.
A propósito, os efeitos eletrônicos presentes no disco soam como uma tentativa de modernizar a sonoridade de uma cantora que tem suas referências musicais calcadas no samba e em outros ritmos regionais cuja base instrumental das canções é fundamentalmente acústica. Se em Braseiro e no palco eles são discretos e funcionam basicamente como overdubs, em Que belo estranho dia para se ter alegria eles se destacam em diversas faixas e, definitivamente, não funcionam. São efeitos por si só antiquados em relação às experimentações elterônicas realizadas hoje em dia. Soam como ruídos estranhos à sonoridade das canções. É bem mais interessante, em termos de efeito modernizador, a introdução de uma guitarra em solo permanente sobre a base de "Interessa", um samba remoto cuja ingenuidade da letra cai bem à interpretação recatada da cantora.
O que fixa Roberta Sá como uma das grandes cantoras brasileiras da atualidade, além da voz, é claro, são os compositores que ela grava, especialmente os seus contemporâneos. Assim que, quando após as três músicas iniciais, ela volta ao primeiro disco, esperava-se que entre os sucessos obrigatórios - "A Vizinha do Lado", "Cicatrizes" e "Casa Pré-fabricada" - houvesse espaço para "Lavoura" , de Tereza Cristina e Pedro Amorim. Mas por enquanto não há. Se impõem até um Chico Buarque menor, como o de "Pelas Tabelas", possivelmente pelo significado deste nome para qualquer platéia de música brasileira.
Fechado o parentese, Roberta volta a Que belo estranho dia para se ter alegria com sua primeira canção autoral, feita em parceria com Pedro Luis. E a beleza de "Janeiros" se assenta justamente sobre a forma como a letra, dele, casa-se perfeitamente à bela melodia criada por ela em um samba-choro a altura da tradição do gênero. O mais recente sucesso aparece na metade do show: "Mais Alguém", de Moreno Veloso e Quito Ribeiro, o grande achado do novo disco, surpreendentemente levada à condição de música de trabalho. Roberta contou a Moreno que gostaria de gravar "Um passo à frente", porém, o compositor advertiu-a de que tal canção já havia sido registrada em disco por Gal Costa, mas prometeu que faria uma canção especialmente para ela. O resultado é uma fusão entre o samba de roda da Bahia, o axé e a bossa pós-tropicalista sobre versos que tangenciam os limites do brega romântico. Uma combinação original na qual se percebe de imediato a marca da dupla. No palco, a interpretação contida não diminui a potência vocal de Roberta ao mesmo tempo que desnuda toda a delicadeza de sua voz.
A ela seguem-se os dois números menos interessantes tanto do show quanto do disco. "Cansei de esperar você", de Dona Yvone Lara e Délcio Carvalho, é um samba morno que, pela temperatura, caíria melhor no Samba Meu de Maria Rita ou no universo de Marisa Monte não fosse ele particular. Com sua voz límpida, Roberta faz bonito, mas o arranjo pouco inspirado não justifica seu registro em disco. Na mesma linha há "Belo e estranho dia de amanhã". Esta uma bossa recauchutada cuja sonoridade passadista paga tributo à estética criada pelo produtor Lincoln Olivetti nos anos 80. Em sintonia com o arranjo, a letra dispara críticas à modernidade até cair em um refrão romântico daqueles que gruda no ouvido, mesmo que a contragosto. Por ironia, a canção é assinada por Lula Queiroga, o mesmo autor daquela que é o ponto alto de Braseiro: "Ah se eu vou". Ao cantá-la, mais tarde, Roberta o redimiria arrancando aplausos entusiasmados da platéia. No show atual não há mais o improviso sobre tema do Samba de Coco Raízes de Arcoverde. Pena, pois a combinação das duas músicas na voz de Roberta configurava-se em um dos grandes momentos do show de Braseiro.
A predominância de Pedro Luis entre os compositores do novo disco se explica pela promixidade entre o compositor e a cantora. Na parte final do espetáculo, Roberta apresentou as canções dele em parceria com Carlos Rennó - "Fogo e Gasolina" e "Samba do Amor e Ódio". Se não figuram entre as mais inspiradas do disco, servem para que Roberta explore o alcance e a potência de sua voz para deleite da platéia. O bis foi todo centrado em músicas do compositor: "No braseiro" e, antes do adeus definitivo, "Girando na Renda". A despedida antes do bis coube a "Laranjeira", de Roque Ferreira, em que o samba navega pelas águas do Rio e da Bahia. Em entrevista ao Estadão, Roberta sugeiriu que no futuro vai dedicar um disco inteiro às canções do compositor baiano no qual terá o acompanhamento do Trio Madeira Brasil. Resta esperar e torcer que os bons ventos realmente o tragam à luz. Pelo aperitivo oferecido em "Afefé", presente na coletânea Samba Novo, tem tudo para entrar para a galeria de clássicos da música brasileira.
A nota final fica por conta de uma dupla de compositores gravados por Roberta que não estão tendo destaque no show. São eles Rodrigo Maranhão e Edu Krieger. A nova versão de "Samba de um minuto", de autoria do primeiro, enxuta, com um arranjo quase minimalista, em que, no show, por vezes a voz de Roberta é acompanhada apenas por percussão, perdeu força e intensidade. "Novo Amor", do segundo, foi registrada em estúdio com o acompanhamento único do bandolim de Hamilton de Holanda e acabou excluída dos shows por não poder ser fielmente reproduzida ao vivo. Lamenta-se, pois a versão de Roberta vai além de uma simples releitura. Ela recria a música ressaltando sua riqueza harmônica e a beleza da melodia. Talvez fosse o caso de criar um arranjo em voz e violão que mantivesse o clima de intimidade entre cantora e instrumentista e o diálogo entre o som e o silêncio. Casaria-se perfeitamente a "Olho de Boi", última música de Braseiro, de autoria de Rodrigo Maranhão, outra que raramente é executada ao vivo, possivelmente pelo mesmo motivo - a sutileza da combinação de voz, violão e ataúde da versão gravada em estúdio. Juntas no roteiro do show elas propiciariam o ápice da comunhão entre a jovem cantora e o seu público apaixonado.
Roberta Sá confirmou no palco a excelência artística de seus discos. O espetáculo está bonito, mas tende a melhorar à medida que as apresentações forem se sucedendo, assim como aconteceu com os shows de Braseiro, e as emoções contidas da intérprete se misturem à razão da cantora irrepreensível com cada vez mais naturalidade. E também com maior abertura ao imponderável.
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