Não foi uma noite memorável como se esperava. Ao contrário das expectativas provocadas desde o anúncio do show há alguns meses atrás, o que se viu no Canecão foram dois espetáculos desiguais costurados pelo desajeitado encontro final entre compositor e intérprete.
O devido reconhecimento a um grande compositor
Rodrigo Maranhão subiu ao palco ao lado de seus comparsas com a simplicidade habitual. O cenário composto apenas pelos instrumentos, dispensando adereços, jogo de luzes ou qualquer outro elemento que não tivesse relação direta com a música. A distorção que antecedeu o primeiro acorde sugeriu que ele começaria com "Caminho das Águas". o Um artifício para conquistar o público logo de cara. Mas não. Veio “Baião Digital”, música que dá nome ao show e estabelece o conceito musical de Bordado. Nem é exatamente um baião, muito menos digital. E o público foi sendo conquistado aos poucos, revelando a porção mineira do carioca de origens nordestinas que carrega o Maranhão no nome e o Brasil em voz e violão. A empatia entre músico e platéia seguiu uma curva ascendente que atingiu seu ápice em “Noites do Irã”. A poesia desenhando a melodia acompanhada pela sanfona de Marcelo Caldi fluindo macia sobre os seixos da percussão até a catarse na coda conduzida pelo ecoar do lamento triste na voz prenhe de emoção sobre o batuque dos tambores, acentuando a dor dos escravos da globalização. Naquele momento, cada um dos presentes na casa definitivamente se entregou de corpo e alma à música de Rodrigo Maranhão. Justamente na música preferida pelo seu pai, conforme ele revelou na estréia do show no Centro Cultural Carioca. Daí em diante, ele ficou mais solto, passou a conversar com o público, às vezes fazendo graça de si mesmo, fazendo do show uma celebração divertida.
A estréia no Canecão foi um evento natural para o compositor. Comportou-se como se estivesse em casa, com autoridade musical. Da primeira à última canção, Rodrigo mostrou uma obra digna da estatura do palco que o abrigava mesmo que o show tenha tido uma duração reduzida. A se lamentar apenas o constante vai e vem dos garçons da casa, talvez motivados por alguns freqüentadores mais interessados no gelo do seu uísque do que no show em si, atrapalhando a visão e, assim, comprometendo a perfeita fruição do espetáculo por parte da maioria.
Roberta Sá: Stage Fright
Roberta Sá entrou em campo com o jogo ganho de antemão. Esse parece ser um dom da cantora. Foi assim em sua estréia em disco, quando recebeu acolhida imediata por parte da grande imprensa e conquistou um público fiel e devotado, entre os quais se inclui o papa pop da MPB, Caetano Veloso. De fato, Roberta Sá tem uma bela voz, de timbre ao mesmo tempo potente e delicado. Construiu um repertório que mescla canções de compositores consagrados às de alguns dos melhores representantes da nova geração, valorizou o onipresente samba e pode-se dizer que é hoje a mais bem sucedida cantora entre as muitas que seguem esta linha. Braseiro foi mesmo uma estréia respeitável, com dois grandes achados - “Lavoura”, de Tereza Cristina e Pedro Amorim, e “Ah se eu vou”, de Lula Queiroga -, uma representante da unanimidade hermânica – “Casa pré-fabricada” – e um sucesso de novela das oito – “A Vizinha do Lado”.
Quando já se esperava o segundo disco, veio a notícia da estréia no Canecão. A produção caprichada com cenário e figurino inéditos, créditos de abertura animados no telão, direção de Pedro Luis e Bianca Ramoneda, criou um clima de show de lançamento não-oficial de Que belo e estranho dia para se ter alegria. A entrada com “Eu Sambo Mesmo” trouxe-nos de volta ao passado. Apesar da usual receptividade de seu público, Roberta não parecia muito a vontade. Se em espaços pequenos sua presença de palco mostrou algum progresso, na amplidão do palco do Canecão ela perdeu toda a espontaneidade arduamente conquistada. Parecendo seguir rigorosamente à marcação de palco dos diretores, executando movimentos ensaiados, cada gesto previamente coreografado, Roberta se entregou a uma interpretação à beira da dislexia. A concentração dividida entre a música e o cerimonial fez a apresentação mais fria e racional. Por vezes, a emoção da voz se perdendo no automatismo da movimentação cênica, distanciando a cantora do público, especialmente nas músicas novas. Nas velhas conhecidas de Braseiro, mesmo que houvesse um afastamento durante a execução, mais um gelinho no copo, um comentário aqui e ali tecendo elogios, palmas de acompanhamento que não sustentavam o ritmo e a intensidade sugerida por Roberta, inevitavelmente, no final, se dava a usual comunhão entre o público, com aplausos e apupos, e a artista, agradecida e feliz.
Até aí, nada que tenha feito do show um mau espetáculo, mas com certeza seria fácil aos seus inúmeros fãs, mesmo que admitindo somente na intimidade de um pensamento nunca verbalizado, lembrarem de apresentações muito mais intensas. O melhor do show foi ter conhecido algumas das músicas que vão estar no disco novo, que ela prometeu para agosto. Embora se configure como uma continuação de Braseiro, o repertório de Que belo e estranho dia para se ter alegria é bem menos óbvio e, por isso, representa um passo a frente em relação ao seu antecessor. No processo ainda não concluído de construção de uma identidade musical própria, Roberta dá mais um passo em direção ao samba.
“Alô Fevereiro”, ao contrário do que foi escrito no post anterior, seria melhor definida como um clássico obscuro. Ao primeiro verso reconheci o samba contagiante do pouco lembrado Sidney Miller. Pelo que se ouviu no show, a versão de Roberta deve superar àquela gravada por Dóris Monteiro no passado.
”Laranjeira” e ”Janeiros também são coisa da antiga. A primeira é um samba de partido alto - um refrão que se repete preparando a passagem para um possível improviso na segunda parte, como a água correndo para o mar. A segunda, assinada pela própria cantora em parceria com Pedro Luís é um típico samba-canção, o qual Roberta interpreta com uma impostação emprestada das cantoras da era de ouro do rádio.
A contida “Mais Alguém” faz ponte com a tradição baiana do samba de roda, mas também flerta com o axé e o samba reggae, uma síntese que só se encontra nas composições de Moreno Veloso, provável autor da canção. A letra versando sobre um amor rasgado, beirando o brega, sobre uma levada percussiva em emulação dissimulada dos tambores do Olodum.
Outros representantes da nova geração gravados por Roberta em seu novo disco são Edu Krieger, de quem escolheu “Novo Amor”, e Pedro Luís e Carlos Rennó com “Fogo e Gasolina” e “Samba do Amor e Ódio” e a já conhecida “Girando na Renda”, única que foi apresentada no show. O que deveria ser o ápice da apresentação, por acidente, proporcionou o maior constrangimento da noite. À entrada de Pedro Luis - mais um convidado especial além de Rodrigo Maranhão no cavaquinho, e Marcelo Caldi na sanfona -, a cantora se perdeu e emendou um verso errado. Corrigiu-se no seguinte e o show continuou. Não estivesse publicamente registrado, rapidamente se poderia esquecer. Menos evidente foi a entrada em tonalidades conflitantes das vozes de Roberta Sá e Rodrigo Maranhão no dueto protagonizado entre os dois em “Samba de Um Minuto”. A cantora foi obrigada a conter o seu alcance vocal adequando-o à voz pequena do compositor enquanto cantavam a primeira estrofe. Mesmo sem soltar a voz como faz em sua interpretação solo, ficou claro que o novo disco de Roberta traz pelo menos um clássico da música brasileira contemporânea.
Conhecidas muitas das músicas, resta agora aguardar o lançamento do disco para ver se a produção de Rodrigo Campello, que também produziu Braseiro, tenha sabido valorizar as vicissitudes de cada canção e o resultado seja menos homogêneo e pasteurizado do que o do disco de estréia e aponte um rumo mais claro à carreira de Roberta, que fuja à sombra de Marisa Monte. “Afefé”, de Roque Ferreira, gravada no disco Samba Novo na companhia do Trio Madeira Brasil, já mostrou que é possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário