quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 2

O samba é meu dom

O fracasso comercial de Você passa e eu acho graça desnorteou ainda mais a jovem Clara Nunes e também os diretores da Odeon. E o disco seguinte, A beleza que canta é um reflexo perfeito da falta de rumo da carreira da cantora. O samba foi posto de lado. Os arranjos ficaram mais leves sem, no entanto, perder a imponência. No repertório predominam canções românticas, como no disco de estréia, misturadas a três composições do versátil Carlos Imperial, que assina a assistência de produção. Também é neste disco que Clara flerta com a Jovem Guarda em duas músicas de importantes compositores do movimento: "Gente boa", de William Prado, e "Graças a Deus", de Fernando Cesar. A capa é o mais perfeito retrato de tais contradições: traz uma Clara sorridente, vestindo calça e colete de couro sobre uma camisa social branca fechada até a gola. Quem sabe uma tentativa de torná-la uma cantora para ser ouvida em família, ao mesmo tempo interessante à parcela mais recatada da juventude e aos pais saudosos das cantoras do rádio. Em pelno furacão tropicalista, o resultado não poderia ter sido outro: mais um tiro n'água. Porém, em "Guerreira de Oxalá", uma das composições de Imperial, já se ouve a voz da cantora limpa, sem impostação, com o timbre e o estilo vocal com os quais ela se consagraria em um futuro próximo.

Os homens da vida de Clara tiveram participação importante nos rumos musicais seguidos pela cantora. Seu futuro namorado, o produtor Adelzon Alves, seria o responsável por sua guinada para o samba, no ano de 1970. Após três discos insignificantes, tanto artística quanto economicamente, Clara estava decidida a tomar as rédeas de sua carreira. A experiência nos terreiros de candomblé e o sucesso de "Você passa eu acho graça" indicavam um caminho a seguir. Ao entrar em estúdio, ela estava firme em seus propósitos de explorar as raízes musicais afro-brasileiras. Para tanto, gostaria de ter como produtor Hermínio Bello de Carvalho, vetado pela gravadora em um jogo de bastidores orquestrado por Carlos Imperial. Por sugestão da própria Clara, Adelzon, radialista que comandava um programa dedicado ao samba na Rádio Globo, assumiu a produção do disco tendo em mente transformá-la na sucessora natural de, pasmem, Carmen Miranda. Clara Nunes é um disco de transição, ainda há uma ou outro arranjo orquestral, mas Clara empunha com garra o estandarte do samba. Também há um baião (“Sabiá”), um frevo (“Novamente”), gênero que poucas vezes foi cantado por ela, e duas vinhetas do folclore litorâneo (“Puxada da rede do xaréu”). Se o disco não foi um grande sucesso, também não repetiu os fracassos anteriores e ao menos uma música estourou: "Ê baiana", um samba rasgado com bateria acelerada. Clara finalmente encontrava uma identidade própria.

Na seqüência, saiu “Clara Clarice Clara”, disco que marca a entrada de Clara no universo dos grandes bambas do samba. Se o disco começa com “Sempre Mangueira”, de Nelson Cavaquinho e Geraldo Queiroz e a terceira faixa é “Alvorada no Morro”, de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, o maior sucesso foi Ilu Ayê (Terra da Vida), samba-enredo de Cabana e Norival Reis que deu à Portela o terceiro lugar no carnaval daquele ano.

Em 1973, Clara apresentou-se ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho no espetáculo Poeta, Moça e Violão. Quase ao mesmo tempo, era lançado Brasília, seu primeiro grande clássico. A faixa de abertura, “Tristeza pé no chão”, samba de Mamão, um compositor de Juiz de Fora, foi o grande sucesso de um disco que tem canções de Chico Buarque (“Umas e outras”), Nelson Cavaquinho mais uma vez, agora em uma parceria com Guilherme de Brito (“Minha festa”), e Dorival Caymmi em uma interpretação dramática de “É doce morrer no mar”. Na versão abaixo de “Quando vim de Minas”, também presente no disco, Clara interpreta a canção de Xangô da Mangueira entre Martinho da Vila e Dona Yvone Lara, cuja voz se faz ouvir no coro. Em estúdio, ela inseriu um “ora veja, Chilau” entre os versos do refrão, como quem diz: “mano velho, sua irmã agora é uma estrela”. Clara se consolidava como a mais popular cantora brasileira.

Logo, seria uma estrela internacional. Em janeiro de 1974, Clara se apresentou no MIDEM, em Cannes, e arrebatou o público francês. Sua performance no palco, acompanhada pelo conjunto Nosso Samba, está registrada na capa de Alvorecer, disco que sucedeu Brasília. Puxada pelo sucesso de "Conto de Areia", a vendagem atingiu a impressionante marca de 400.000 unidades vendidas, uma cifra sem precedentes para uma cantora brasileira. Com a sua popularidade no auge, Clara era presença constante não só no rádio, mas também na televisão. Aqui ela interpreta "Meu sapato já furou" no programa Globo de Ouro.



No mesmo ano, Clara foi convidada por Bibi Ferreira a participar do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, ao lado do ator Paulo Gracindo. Tratava-se de uma homenagem ao jornalista e compositor Antonio Maria e à cantora e compositora Dolores Duran. Paulo Gracindo atuava como o cronista narrador enquanto Clara era responsável pelos números musicais em que interpretava canções dramáticas que nada tinham a ver com os rumos que sua música havia tomado. De certo modo, foi uma segunda volta por cima, pois o espetáculo permitiu que ela mostrasse todo o seu talento enquanto cantora e intérprete para além do universo do samba e da música popular. Foi então que ela conheceu Paulo César Pinheiro. Acometidos por uma paixão fulminante, os dois se casaram. Se o sucesso havia ampliado as liberdades de Clara dentro da Odeon, ao lado do marido ela assumiu autonomia total sobre as escolhas artísticas que iriam pautar sua carreita até o acidente que lhe tirou a vida.

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