segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Samba Quadrado (e transcendental) de Rodrigo Maranhão

Crianças brincam na calçada de uma pequena travessa do Horto, bairro contíguo ao Jardim Botânico na zona sul do Rio, em frente a um conjunto de casas geminadas. Neste clima interiorano, por trás da fachada ensolarada e colorida de uma delas, Rodrigo Maranhão grava o seu segundo disco, Samba Quadrado - título de uma de suas doze faixas -, cujo lançamento deve acontecer em janeiro de 2010, segundo o próprio compositor, via MP,B Produções.



Naquela tarde em fins de outubro em que visitei o estúdio, o próprio Maranhão abriu a porta. Encontrava-se na cozinha servindo água para os músicos e técnicos. Deda tinha acabado de gravar flautas de pife na faixa "Sonho", uma das composições mais recentes da lavra de Maranhão, escolhida para abrir o show de transição entre o primeiro e o segundo disco apresentado no CCBB do Rio alguns dias antes. Ao vivo, a canção chamou atenção pela poética elaborada, cada palavra dando sentido claro aos versos, manifesto de um eu lírico a um só tempo ensimesmado e aberto ao mundo, expressando a personalidade do indivíduo por trás do compositor.

A música é brasileira, porém, cada vez mais e como sempre, nascida de um Brasil inominável, de confluências e miscigenações pouco ou nunca experimentadas. São evidentes certos traços nordestinos desenhados pelo acordeon de Marcelo Caldi e pelo ritmo percussivo. Este, ao mesmo tempo, não nega algum grau de parentesco, ainda que indefinido, com a bateria do Banga, mais ainda quando Maranhão incorpora o mestre de bateria ao lado da mesa de som para determinar o encaixe perfeito da flauta de pife, elemento novo na sonoridade "maranhense", componente ancestral que remete à ascendência indígena do Brasil pré-colonial.

Certos compositores são indissociáveis de suas origens e é quase sempre inevitável associá-los a elas: Dorival Caymmi e sua indolência baiana; Noel Rosa e a malandragem carioca; Luiz Gonzaga e a perseverança do sertanejo; Outros, a grande maioria, são capazes de transitar por gêneros diversos da tradição brasileira, seja com reverência ou ironia, mantendo imóveis as fronteiras que os separam ou fundindo-os com novidades externas, como o rock e a eletrônica. A música de Rodrigo Maranhão elimina categorizações e inaugura uma "música brasileira" que se basta com estas duas palavras por definição. Caberia o popular a uni-las, mas seria mais apropriado o universal.

Samba Quadrado trará a também recente "Quase um Fado", composta sob inspiração do português Antonio Zambujo, a quem Maranhão assistiu no começo deste ano, em um show no teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico vizinho do estúdio em que agora grava o novo disco. "Quase um Fado" porque o compositor-narrador assume-se um navegador solitário que carrega "no peito o segredo dos mares por navegar", solto no Oceano Atlântico, a meio caminho entre Brasil e Portugal. Não chega a ser um fado pronto e acabado, ou, antes, trata-se de um fado brasileiro. "Trago no peito o segredo dos mares que desafio", canta Maranhão em outro verso. Não satisfeito apenas com a fagulha inspiradora, Maranhão convidou Zambujo para fazer uma participação na faixa, prontamente aceita, mas que, àquela altura, ainda não tinha sido gravada.

Depois do pequeno intervalo para refrescar a garganta na pequena cozinha localizada logo na entrada, ante-sala para a vasta sala de gravação, com seu pé direito alto, alguns instrumentos dispostos pelos cantos e o microfone de gravação montado bem no centro, Deda se posiciona, agora com a flauta-baixo em punho. Maranhão e Zé Nogueira, que assina a produção do disco, sobem as escadas até a mesa de som, onde Duda, o técnico de gravação os aguarda com a próxima música a ser trabalhada no ponto.

Dado o play, violão dedilhado marca o ritmo da introdução de "Camaleão". A princípio, a flauta-baixo só entra no segundo compasso, Deda vai improvisando frases melódicas aleatoriamente. Como não domina a harmonia, toca livremente seguindo as sugestões de Zé Nogueira. Enquanto não aprova o que ouve, Maranhão se mostra tanquilo, sentado no sofá atrás da mesa de som, de onde não consegue vê-la tocando. À medida que Deda se aproxima de uma frase que lhe agrada, vai ficando agitado. "É isso, ficou bonito, assim", comenta. Zé Nogueira, porém, ainda não se dá por satisfeito. Concorda que foi bom, mas acredita que ainda pode ficar melhor. Alguns takes depois, os dois se dão por satisfeitos e resolvem seguir adiante.

Não haverá flauta sobre a voz. Entre as duas partes cantadas, há espaço para um solo. De início, Maranhão e Zé Nogueira dão liberdade total para Deda improvisar. A cada take obtem-se um resultado diferente. Zé parece gostar do caminho que a flauta vai tomando, falta apenas adequá-la ao tempo da harmonia, pois o final do solo está invadindo a volta da voz. Maranhão não aprova, argumentando que o solo está muito "jazzístico" e que prefere os primeiros takes, com menos floreios. O comentário traduz a essência da música de Maranhão: harmonias relativamente simples sobre as quais se desenham melodias de beleza insólita e desconcertante.

Na tentativa de guiar a execução, Zé Nogueira faz com que Deda fica confusa e aquilo que em algum momento soou bem a ela se perde em tentativas de verbalização. É aí que Maranhão vem com a ideia que define a questão: "E se ela fizer o solo seguindo a melodia vocal?", sugere. E foi assim que se resolveu o solo de "Camaleão", não sem muitas idas e vindas de Zé Nogueira e Maranhão, da sala de controle à sala de gravação, entre solfejos e demonstrações da harmonia no violão.

No fim, mais relaxada, Deda deu sua maior contribuição à faixa, extraindo notas percussivas da flauta, ritmadas pelo vigor do sopro. Maranhão e Zé Nogueira gostam tanto que pedem para ela repetir o expediente também na introdução.

Enquanto Bordado (2007) foi quase um disco caseiro, de voz, violão e a participação de seus parceiros de Bangalafumenga nos ritmos, Samba Quadrado conta com uma estrutura profissional e a participação de instrumentistas importantes da cena musical carioca. A banda base conta com Marcelo Caldi no acordeon e teclados; Pretinho da Serrinha na percussão; e Nando Duarte no violão de 7 cordas, além do violão do próprio Maranhão. Entre as participações especiais, há o percussionista Marcos Suzano, a dupla Zé da Velha e Silvério Pontes, o guitarrista Ricardo Silveira e até um conjunto de cordas na faixa-título. "É quase uma super-produção", define Maranhão ao compará-lo com o primeiro.

Além das quatro músicas citadas anteriormente, Samba Quadrado traz ainda "Três Marias" e "Maria Sem Vergonha", ambas dos tempos de Mafuá, grupo de compositores formado na UniRio que abrigava Edu Krieger, Raphael Gemal, Rubinho Jacobina, Pedro Holanda e Carlos Pontual; e "Samba pra Vadiar", que há tempos vem sendo apresentada em shows e saiu no disco coletivo "Mar Ipanema", lançado no fim do ano passado.

A tarde vai chegando ao fim e, encerrada a participação de Deda, Maranhão, Zé Nogueira e Duda dão uma pausa para tomar um café na esquina. Entra em cena o Maranhão contador de histórias, evidenciando ainda mais a leveza e a alegria com que ele conduz o processo de produção do novo disco. O lusco-fusco matizado pelos tons verdejantes da natureza ao redor mantém o tempo em suspensão. Sinto-me gravitando em uma zona de atemporalidade a qual nos transportam os grandes clássicos. Tento prestar atenção à conversa, mas não consigo abstrair a sensação de que, antes mesmo de vir à luz, Samba Quadrado já garantiu seu lugar entre eles. Pela primeira vez, experimentei a intensidade de ver a concepção de uma obra-prima. Não compreendo de imediato: é o transe total.

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