Tímido, o senhor calvo sobe ao palco sob os aplausos da casa cheia. Solitário, ele empunha a sua guitarra e experimenta algumas notas testando a afinação. Não está perfeita. Atarraxa aqui e ali, ansioso, toca alguns acordes. Aperta mais um pouco o mi agudo, testa de novo. Uma vez satisfeito, sorri discretamente, para ele mesmo. Está pronto para começar. As primeiras notas introduzem “Corcovado”, clássico da bossa nova - o banquinho e o violão transfigurados pela eletricidade de um homem apaixonado por sua guitarra. O solo amplifica as dissonâncias que ele improvisa sobre a harmonia da canção. A concentração é total. Ele toca com o olhar fixo sobre os movimentos da mão esquerda, mentalizando a digitação no braço da guitarra, enquanto a mão direita determina a intensidade e a velocidade das palhetadas precisas. Durante todo o show será assim. Um homem e seu mundo, Lanny Gordin e a sua guitarra.
Mesmo quando, a partir da segunda música, recebe seus músicos de apoio no palco, ele se mantém alheio, astro rei em seu universo particular em torno do qual gravitam o baixista Fábio Sá, o baterista Zé Aurélio e o guitarrista Guilherme Held. Juntos eles começam com “Baby” e depois retomam algumas canções do Projeto Alfa, disco dividido em dois volumes, lançado em 2004, que marca a retomada da carreira de Lanny após anos em que se manteve à margem do circuito musical devido a complicações psicológicas decorrentes de um mergulho profundo nos descaminhos da mente conduzido pela esquizofrenia e pelo ácido lisérgico.
Independentemente deste hiato em sua trajetória, o timbre da guitarra de Lanny Gordin permanece inconfundível e único, o mesmo dos tempos do tropicalismo, quando integrou as bandas de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa. Ouvindo gravações antigas ou vendo-o tocar ao vivo, hoje, é fácil identificá-lo. Limpo e levemente distorcido pelo ir e vir de seu pé sobre um pedal wah-wah. Nesta noite, o rangido do pedal cria um complemento rítmico agudo, certamente involuntário, em contraponto ao efeito em si. Travessura de moleque, ingênuo e ao mesmo tempo endiabrado. No intervalo entre as músicas, Lanny se dirige à platéia furtivamente, balbucia algumas palavras como que em desafio a um castigo e por vezes arranca gargalhadas do público. E então sorri, sempre sorri antes de voltar ao seu brinquedo favorito.
Em Duos, seu disco mais recente, Lanny convidou alguns amigos aos quais ele emprestou o som de sua guitarra em troca de uma participação vocal. Parceiros antigos como Jards Macalé e os tropicalistas acima citados se misturaram a novos companheiros como Adriana Calcanhotto, Junio Barreto e Vanessa da Mata. Ao ser convidado, Rodrigo Amarante escolheu cantar “Mucuripe”, que, no entanto, já havia sido gravada por Fernanda Takai. Assim, se viu impelido a retribuir com um presente para além da simples participação. Aproveitou a ocasião e compôs “Evaporar”. Único participante do disco presente na versão carioca do show, Amarante subiu ao palco pela primeira vez desde que os Los Hermanos anunciaram o recesso para se juntar a Lanny na interpretação de sua mais nova canção.
“Evaporar” é contemplativa. Discorre sobre a passagem do tempo em uma lírica que remete a “O Vento”, e tem uma sonoridade delicada em que a guitarra de Lanny flutua sobre a harmonia do violão tocado por Amarante. Aponta para uma direção menos roqueira, assim como muitas das canções de Marcelo Camelo presentes no último disco da banda, demonstrando que o recesso certamente não se deve a problemas de afinidade musical.
Em seguida, Amarante anuncia que vai tocar uma música do repertório dos Los Hermanos em uma versão cuja sonoridade se aproxima bem mais do formato original da canção tal como ele a compôs. Levada no violão, acompanhado por baixo acústico e timbatera, e com um andamento mais lento, “Condicional” destaca o acento nordestino que a sujeira das guitarras e o peso da bateria escondem no arranjo concebido pela banda. No final, a distorção apoteótica é substituída por um diálogo entre a base dedilhada por Amarante e o solo de pureza cristalina executado por Lanny. O último número da dupla foi “Primeiro Andar”, outra do 4. Em ritmo de acalanto, o clima intimista da música foi levado às últimas conseqüências. As canções de Rodrigo Amarante reveladas na integridade da composição, despidas da engenharia sonora dos Los Hermanos, temperadas pela guitarra de Lanny foram a retribuição do anfitrião da noite ao presente recebido no disco. Belo momento.
No último ato do show, Lanny traz à tona a lenda por trás do homem. Apresenta as credenciais de artífice da guitarra tropicalista emulando nota por nota o solo de “Atrás do Trio Elétrico” registrado no álbum branco de Caetano Veloso. Em sua versão de “Tropicália”, o hino não-oficial do movimento, a melodia se faz ouvir através do solo. A guitarra canta, geme, grita, explode e exalta. Os fantasmas do passado não o assustam mais. Nascido na China, filho de mãe russa e pai polonês, com a infância vivida em Israel e formação musical brasileira, agora, Lanny voltou a ser esse mesmo homem de novo. O homem que encontrou a sua identidade, uma identidade brasileira, no som de sua guitarra.
Show: Lanny Gordin com participação de Rodrigo Amarante
Local: Estrela da Lapa - Rio de Janeiro
Data: 10 de maio de 2007.
Confira na Tuba do Pindzim Lanny Gordin e Rodrigo Amarante interpetando Evaporar e Condicional no show do Estrela da Lapa.
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