quarta-feira, 16 de maio de 2007

7 Cordas dedilhadas e um Tom de voz

O público presente no Cinematèque Jam Club no último domingo assistiu ao encontro de duas tradições distintas da música brasileira. De um lado, o violão do samba, a harmonia da canção flertando continuamente com o peso da baixaria nas cordas mais graves, tocado por um mestre que tem incorporado ao seu nome o sobrenome do seu instrumento: Paulão 7 Cordas. Além de exímio instrumentista, diretor musical e arranjador. Já trabalhou com muitos dos principais nomes do samba carioca, de Nelson Cavaquinho e Velha Guarda da Portela a Tereza Cristina e Zeca Pagodinho. Do outro, a voz de Thalma de Freitas em um tom contido e performático entre a bossa do samba jazz e a fossa do samba-canção. Uma tradição herdada do convívio com o seu pai, o maestro Laércio de Freitas, depois aprofundada com os demais integrantes do trio que a acompanha em sua carreira solo. Além do maestro, o baixista Bebeto Castilho, membro original do Tamba Trio, e o baterista Wilson das Neves.

Entre as jovens cantoras brasileiras, Thalma é aquela que transita com maior naturalidade entre os diversos gêneros musicais brasileiros. Enquanto a grande maioria compõe seus ecléticos repertórios como se estivesse visitando um supermercado, com preferência pela prateleira do revitalizado samba de raiz ou da fossilizada Bossa Nova, Thalma não se fixa a nenhum estilo ou referência, mantendo trânsito livre entre o passado e o presente, sempre com um foco bem definido em cada um dos seus diferentes projetos. Com os companheiros de Orquestra Imperial, ela subverte a pureza do samba com arranjos de gafieira pop-rock. No último carnaval, caiu na folia juntando-se aos paulistas do Instituto em um tributo ao Tim Maia Racional. Integrou a banda do produtor Apollo 9 levando aos palcos sua mistura entre o som orgânico e o eletrônico. E mesmo quando cai no samba tradicional, como em sua participação em Samba Novo, disco coletivo lançado este ano que reúne alguns nomes que vêm renovando o gênero no Rio de Janeiro, ela se destaca pela diferença. Troca o cavaquinho pelo piano no diálogo com o violão, enquanto o arranjo percussivo privilegia as sutilezas ao invés da marcação em sua interpretação de “Minha noite é de manhã”.

Apesar dos convites, Thalma ainda não havia experimentado o formato minimalista de um show de voz e violão. Ao surgir a oportunidade de fazê-lo, convidou Paulão 7 Cordas para acompanhá-la. O repertório foi se desenhando a partir dos ensaios com sugestões de parte a parte, tendo como substrato o samba-canção. “Voz e 7 Cordas” apresenta músicas sobre amores acabados ou mal-resolvidos que refletem um momento particular da vida da cantora. Esta intimidade é aprofundada pela subtração da grandiloqüência dos arranjos originais das canções a um único instrumento – o violão.

No palco, Thalma usa a alta carga dramática das letras para dar vazão à sua veia interpretativa enquanto as sete cordas de Paulão constroem os cenários. Pode ser a amante que espezinha em “Basta de Clamares Inocência” (Cartola) ou que é espezinhada no pout-pourri de “Me Deixa em Paz” (Monsueto Menezes/Ayrton Amorim) e “Mel na Boca” (David Correa). Atriz versátil, vai da amargura à piedade em “Risque” (Ary Barroso), coloca-se na terceira pessoa e assume a condição de cronista em “Louco (Ela é seu mundo)” (Wilson Batista e Henrique de Almeida) e chega até a fazer graça com a própria desgraça em “Camisa Amarela” (Ary Barroso). Mas quando se emociona, após a execução de “Ronda” (Paulo Vanzolini), não é atriz nem personagem. Perde o ar, esquece a letra da próxima música, pede uma pausa, respira fundo e contém a emoção no olhar lacrimejante. Depois continua, conforme prometido, até acabar o vinho que ela e Paulão bebem no intervalo entre as músicas.

Thalma aproveita as pausas para conversar com o público. Convida todos a assistirem a intimidade dos ensaios em seu canal no youtube. Elogia as sugestões de Berna Ceppas, seu produtor, presente na platéia - “ele nunca erra”. Mas a revelação mais emblemática surge quando ela aponta sua cantora favorita – Elizeth Cardoso, a faxineira das canções. “Era a Rosa Passos, mas agora eu estou conhecendo mais a fundo a Elizeth”. Na relação entre as duas cantoras, fecha-se o círculo da tradição entre o passado e o presente que caracteriza o show.

A carreira de Elizeth começou na era de ouro do rádio, na década de 30, graças a um convite de Jacob do Bandolim. Ela dividia seu tempo entre os estúdios e as boates onde se apresentava como crooner até consolidar-se como intérprete e assinar seu primeiro contrato com uma gravadora já no fim dos anos 50. Em 1958, gravou Canção do Amor Demais, disco dedicado às canções de uma dupla ainda pouco conhecida pelo grande público: Tom Jobim e Vinicius de Moraes. “Chega de Saudade” e “Outra Vez” registraram pela primeira vez o violão de João Gilberto e entraram para história como marcos inaugurais da bossa nova. Sete anos depois, Elizeth se integrou ao movimento pela revalorização do samba de raiz com Elizeth sobe o Morro, álbum em que gravou músicas de compositores como Cartola, Nelson Cavaquinho, Candeia e Paulinho da Viola. E em 1968, promoveu o encontro entre o samba, representado por Jacob do Bandolim e o Conjunto Época de Ouro, e a bossa nova, representada pelo Zimbo Trio, em um show histórico, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, quando ainda existia um distanciamento até então intransponível entre os músicos de uma e outra vertente. Já no fim de sua vida, gravou o disco Todo Sentimento, acompanhada apenas por Rafael Rabello no violão de sete cordas. Uma das músicas é “Doce de Coco” (Jacob do Bandolim/Hermínio Bello de Carvalho), que também foi gravada por Thalma em seu disco solo.

O trânsito entre diversas tradições musicais brasileiras é um traço comum às trajetórias de Elizeth Cardoso e Thalma de Freitas, cada qual à sua época, sem que haja aí qualquer juízo de valor ou parâmetro para comparações. O show “Voz e 7 Cordas” presta homenagem, se não especificamente a Elizeth, a um passado sem o qual não haveria, hoje, no presente, uma intérprete do quilate de Thalma de Freitas.

Show: Voz e 7 Cordas
Músicos: Thalma de Freitas (voz) / Paulão 7 Cordas (violão de 7 cordas)
Local: Cinematèque Jam Club - Rio de Janeiro
Data: 13 de maio de 2007.


Assista a "Basta de Clamares Inocência" e “Louco (Ela é seu mundo)” no show do Cinematèque na Tuba do Pindzim.

Um comentário:

Thalma de Freitas disse...

Adoro!

tem mais videos, né?!
manda pra mim, por favor...
afilhadomaestro@gmail.com


Obrigado mesmo, é um alivio sentir-me reconhecida. =)

Paz,
T.
www.afilhadomaestro.blogger.com.br